Democratização pelas ondas do rádio


Confira a entrevista que a Associação Imagem Comunitária (AIC), parceira da Vira, fez com Cristiane Andriotti, pesquisadora e ex-integrante da Rádio Muda, uma das mais antigas do país. Na entrevista, Cristiane ressalta a importância da participação popular nas comunicações, e as dificuldades com as quais as rádios comunitárias costumam encontrar.

Fabiana Ibrahim, da Associação Imagem Comunitária (AIC)

As rádios comunitárias marcaram a cena brasileira nos anos 80 e, de lá pra cá, o movimento só vem crescendo. Atualmente, já são milhares de rádios de baixa potência espalhadas pelo território nacional, várias delas em situação irregular em decorrência das barreiras impostas pela legislação brasileira. Sobre o movimento de Rádios Livres e Comunitárias em nosso país, a Agência de Notícias conversou com Cristiane Andriotti, pesquisadora e ex-integrante da Rádio Muda (Campinas - SP), uma das mais antigas experiências de rádios livres universitárias do Brasil. Cristiane defendeu, pela UNICAMP, a dissertação "O movimento das rádios livres e comunitárias e a democratização dos meios de comunicação no Brasil", em abril de 2004.

Qual a diferença entre rádios livres, comunitárias e educativas?

Cristiane: A legislação brasileira reconhece apenas as rádios comunitárias e educativas como gêneros radiofônicos que têm finalidade para apropriação pública, educativa, cultural e sem fins lucrativos. As rádios livres não possuem qualquer tipo de reconhecimento legal e se enquadram no que geralmente é denominado por "rádios clandestinas", ou "rádios piratas". Segundo Venício Artur de Lima, em recente estudo publicado pelo Observatório da Imprensa, as emissoras educativas ainda se diferenciam das comunitárias pela natureza das leis que as regulamentam.

Do ponto de vista de quem atua no meio radiofônico, ou mesmo do ponto de vista do ouvinte participativo, as experiências de rádios livres, comunitárias e educativas diferem ou se assemelham entre si variando de caso a caso. É importante frisar que não é o gênero - comunitário, livre, ou educativo - que determina a forma das apropriações, e sim o contrário: se há mobilização de um grupo representativo de uma comunidade, que se organiza para transmitir informações via rádio, mantendo esse caráter aberto e participativo como característica fundamental dessa emissora, ela pode ser considerada pública e democrática. O enquadramento legal da emissora em um ou outro gênero irá depender de diversos fatores: desde o desejo da comunidade por legalizar a experiência radiofônica, ou não, passando pelo acesso à assistência jurídica até a disponibilidade do poder público em atender a essas demandas. Há rádios constituídas legalmente como comunitárias, por exemplo, e que atuam na verdade como rádios comerciais, onde ocorre a centralização dos objetivos da emissora, das decisões e posicionamentos políticos, dos critérios de seleção de informações, de participação e dos lucros.

Como se iniciou o movimento de rádios comunitárias no Brasil e qual a importância dessas experiências naquela época e no panorama atual?

Cristiane: Historicamente, podemos estabelecer a distinção entre esses gêneros partindo da sua própria origem, o que foi objeto de estudo da minha dissertação de mestrado "O movimento das rádios livres e comunitárias e a democratização dos meios de comunicação no Brasil" defendida em 2004. Para resumir, porque não caberia aqui reproduzir todo o processo, as rádios comunitárias surgem no Brasil a partir do momento que o movimento pela democratização dos meios de comunicação recebe a adesão de radioativistas e passa a reivindicar a legalização das apropriações públicas de emissoras de rádio. Até então, boa parte dessas apropriações públicas se auto-definiam através do conceito de "rádios livres", forjado a partir das experiências na França e na Itália dos anos 70. Quando o movimento passa a reivindicar seu diploma legal, há um esforço por se construir um modelo de experiência que seja aplicável e regulamentado. Surge no Brasil, então, o conceito de rádio comunitária, que foi multiplicado a partir de experiências na Colômbia, na Bolívia e em outros países.

A origem do movimento dessas rádios no Brasil pode ser relacionada com o próprio contexto histórico-político dos anos 80. Quando as rádios livres "migram" para o conceito "comunitário", na transição da década de 80 para 90, o movimento geral de democratização das comunicações vinha da grande decepção que foi a composição final do capítulo da Comunicação Social da Constituição Federal de 1988. As rádios livres e comunitárias, naquele momento, eram as únicas emissoras públicas não estatais - contudo, ilegais - existentes no Brasil. Elas criavam, a partir de sua própria experiência, um conceito de Sistema Público não estatal - que, embora estivesse previsto na nova Constituição, vinha sem um fundamento prático mais consistente. Elas serviram, então, para fundamentar o que seria esse sistema público não estatal, mas também serviram para demonstrar que a necessidade pela democratização das comunicações no país não se resumia somente na queda dos dispositivos de censura.

Atualmente, essa necessidade existe e continua praticamente a mesma. Embora as novas tecnologias de informação, em especial a Internet, tenham um papel importante na questão do acesso a instrumentos para transmitir e obter informações, essa tecnologia não pode ser definida exatamente como um meio de comunicação de massa. Quem está do lado de cá do computador não sabe quem, onde, ou quando a sua informação vai ser acessada, diferente do rádio, que integra as pessoas no seu raio de alcance enquanto elas trabalham, se locomovem, se divertem etc.

Qual sua opinião sobre a legislação que regulamenta as emissoras de rádio comunitária no Brasil? Para você, por que ela ainda é tão restritiva?

Cristiane: Minha opinião como pesquisadora difere da minha opinião pessoal. Pessoalmente, acredito que a legislação vigente é desnecessária e inútil para a efetiva democratização do meio rádio no Brasil. Enquanto pesquisadora, observei que diversas comunidades que se apropriaram do meio rádio o fizeram porque tinham a esperança de serem contempladas pela legislação, e porque não poderiam fazê-lo de outra forma. A lei trouxe a esperança de que experiências coletivas de apropriação do rádio pudessem ser mantidas e protegidas, dando continuidade, dessa forma, aos objetivos que levaram essas comunidades a se organizarem em torno desse meio de comunicação.

Entretanto, e é aqui que a minha opinião pessoal encontra convergências com os resultados da minha pesquisa, a lei 9612/98 é excludente, não protege as emissoras, não está de acordo com as reivindicações originais do movimento, impõe padrões técnicos que são impossíveis em alguns casos e insuficientes na maioria.

A lei impede a formação de rede e não explica o que o legislador entende por "rede". Num mundo onde a comunicação tornou-se um direito humano, onde as tecnologias estão em constante evolução, o que significa não poder entrar em rede senão excluir essa experiência, rica em possibilidades, do convívio, do intercâmbio, da atuação no mundo globalizado?

A lei não protege as comunitárias de interferências de outras rádios comerciais e/ou estatais. Se uma rádio comunitária sofre interferência de outra emissora, não há nenhum dispositivo legal que possa obrigar a emissora que interfere a resolver o problema. Neste caso, somente o fechamento da rádio comunitária é uma opção que está ao alcance da comunidade. Na opinião do Delegado da Polícia Federal Armando Coelho Neto, trata-se do único caso no mundo de uma lei que institui um serviço e não o protege.

Em que medida o movimento de rádios comunitárias pode realmente contribuir para a democratização da comunicação e a construção da cidadania?

Cristiane: O Brasil ainda vive a situação do monopólio privado das comunicações, em que essa ferramenta é apropriada exclusivamente para atuar como meio de obtenção de lucro, de poder político, na reprodução de produtos da indústria cultural etc. Essas apropriações privadas não são, nem de longe, suficientes para responder à totalidade das comunicações humanas. O monopólio do sistema privado impõe regras e condições para a circulação de informações que não correspondem necessariamente às necessidades da população, da mesma forma que impõe regras e condições para a produção cultural.

Ora, nem a comunicação de informações, nem a produção cultural estão limitadas aos objetivos econômicos. Sabemos que esse tratamento fundamentalmente capitalista das informações, da cultura e dos meios de comunicação recria formas de censura, de manipulação, de representação da realidade que servem a interesses que não são inocentes. Em outras palavras, o perigo do monopólio privado das comunicações é o perigo de não haver outros pontos de vista em debate.

A cidadania não se constrói com a visão unilateral ou totalitária dos monopólios de cultura, de informação, de decisão. O debate democrático só pode existir quando a diversidade aparece em todas as estruturas e através de todos os instrumentos sociais. As rádios livres e comunitárias, neste sentido, exercem o papel de construtoras e disseminadoras locais da diversidade e do debate. São educativas na medida em que quebram os padrões de homogeneidade, levam ao ar as contradições da própria vida social, confrontam com a visão idealizada dos meios comerciais, abrem espaço para a cultura que não é vendável. Por menores que sejam essas emissoras, sua posição é estratégica se quisermos construir um país mais saudável.

Como ficam as rádios comunitárias na era da digitalização?

Cristiane: O movimento pela democratização das comunicações bem que tentou dialogar com o governo a respeito da escolha do padrão digital, entre outros assuntos, mas essa não é uma questão que deve estar restrita aos movimentos ou associações de classe, pois afeta diretamente toda a sociedade. Se tomarmos a história por lição, nós, cidadãos comuns, deveremos desde já exigir uma reserva de canais para o sistema público não estatal - incluindo nele as rádios comunitárias. Mesmo que houvesse uma mobilização nacional em favor dessa reserva de canais, isso por si só seria suficiente para garantir que as rádios comunitárias sobrevivessem no cenário dessa nova tecnologia. Isso porque a convergência digital irá encarecer e complicar o manuseio de equipamentos, também irá redefinir a linguagem com que nós estamos acostumados a identificar uma comunicação via rádio. Se, por um lado, ela amplia as possibilidades de participação, por outro lado não podemos esquecer que estamos no Brasil e que todas as possibilidades estão de certa forma determinadas pelas desigualdades sociais. Como as associações de bairro irão se organizar para adquirir e manter esses novos equipamentos? Isso é um problema para ser pensado pelo movimento desde já. O movimento de rádios sempre foi marcado por uma boa dose de solidariedade, houve diversas permutas de equipamentos entre emissoras que se ajudavam diante de apreensões praticadas pela ANATEL - que promove a punição antes do julgamento. Na era digital, essa tradição de solidariedade talvez necessite ser mais sistematizada. A era digital também irá provocar mudanças jurídicas, a limitação do espectro eletromagnético (ou seja, o número de emissoras que "cabem" num dial de um aparelho de rádio) não será mais um problema, com isso o governo, a ANATEL, a Polícia Federal perderão o principal argumento repressor. Se, por um lado, essas são as previsões mais óbvias, eu gosto de acreditar no oposto: que o rádio, como nós conhecemos, não irá desaparecer.

*A AIC é parceira da Vira em Belo Horizonte (MG)

AIC - http://www.aic.org.br/

Reportagem Revista Viração - (14/09/2007)