A gramática simbólica


A organização e o sentido das idéias e comportamentos sociais são produzidos e reproduzidos também pelas formas de comunicação.

Claudius Ceccon

No sentido antropológico, cultura não é o capital de saberes acumulados individualmente. Ao contrário, é uma espécie de gramática simbólica que organiza e dá sentido às idéias, aos comportamentos, às práticas sociais. A comunicação e as relações sociais são fundamentais na produção, reprodução, circulação e apropriação da cultura, conferindo-lhe um caráter dinâmico, de permanente re-criação, atravessada por relações de força, por interesses em disputa. Os indivíduos, em razão de sua posição social, têm acessos diferenciados à chamada cultura legítima, produzindo sínteses particulares para a interpretação do mundo.

Então, ‘vamos combinar’ que cultura tem a ver com valores, modos de pensar, comportamentos; com crenças e teorias que ajudam a explicar o mundo e o lugar que alguém ocupa nesse mundo. E ainda com normas, regras e princípios morais que determinam de que maneira as pessoas devem agir.

Comunicação

A comunicação acontece de muitas maneiras: gesto, expressão corporal, som, palavra. Mesmo regidos pela escrita, em leis, códigos e contratos, a realidade é que vivemos cercados de imagens. Literalmente bombardeados o tempo todo por elas, acabamos por absorvê-las, sem nos dar conta, tornando-as parte de nosso modo de pensar e sentir. O olhar é o principal agente desse processo.

Tomemos a cidade, que nos convida a leituras visuais do seu tecido urbano: o modo de organização do seu espaço, a qualidade desigual dos bairros, aqui os elegantes e bem cuidados, lá longe a periferia caótica e feia. Outras mensagens nos chegam pela publicidade em outdoors, em vitrines de grandes lojas, em anúncios luminosos, nas bancas de jornal, multicoloridas -- quem lê tanta notícia? –, em muros grafitados, pelos sinais de trânsito e outros signos que ordenam a vida urbana.

Há, ainda, os meios eletrônicos, que emitem, em cadeia nacional, imagens de um modo de vida Zona Sul do Rio de Janeiro, tão “naturais” e prazerosas, que acabam por anestesiar nossa capacidade de reflexão. O embrulho é atraente, esteticamente agradável e, com isso, eventuais valores nocivos acabam sendo “comprados” imperceptivelmente: “Beba com moderação”, diz a voz suave, amiga, paternal, que tudo permite, ao mesmo tempo absolvendo de toda responsabilidade quem aconselha.

Se a visão de mundo que prevalece em uma sociedade é articulada com base em determinados valores, e se nessa sociedade um grupo detém os meios de produzir e impor seus valores e suas próprias idéias aos demais, não será isso incompatível com a prática da democracia?

Como ser capaz de uma leitura da vida cotidiana que proporcione uma visão crítica do que nos chega pela mídia, considerando-nos um dócil rebanho de consumidores passivos? Que instrumental de análise é preciso adquirir para desvelar seu verdadeiro conteúdo, aquele que nos é escamoteado? Quando e onde se aprende isso? Será uma utopia irrealizável responder dizendo “desde pequenos, na escola”?

O desafio da educomunicação

Comunicação implica troca, interação, participação, co-autoria. Comunicação é, portanto, outra coisa, bem diferente da simples informação transmitida em mão única pela mídia. Paulo Freire dizia que “Aprender a ler é conhecer o mundo, e aprender a escrever é adquirir o poder de mudar esse mundo”. O que seria, hoje, aprender a ler e a escrever com as novas tecnologias?

O que significa aprender a conceber, realizar, compor, editar, emitir, exprimir-se em uma nova linguagem, apoderando-se de instrumentos até há pouco tempo fora do alcance da grande maioria? Que lugar é mais propício, mais adequado, mais democrático para esse aprendizado do que a escola, onde estão crianças e adolescentes, professores e gestores, além das famílias, cuja participação é fundamental, e da comunidade na qual a escola está física e culturalmente inserida?

Para uma escola que ainda não usa adequadamente sequer os livros, as TICs, tecnologias de informação e comunicação, parecem um obstáculo quase intransponível. Suas características -- interatividade, interdisciplinaridade, iniciativa, pesquisa, co-autoria dos alunos da sua própria formação (aprender a aprender) -- são alguns dos desafios que a escola já poderia ter transformado, há tempos, em ação pedagógica cotidiana, pois era parte do discurso da Academia e dos especialistas, discurso agora incorporado às diretrizes que, teoricamente, orientam todo o sistema educacional... mas, como custam a baixar no terreiro da realidade da escola pública!

Entretanto, a cada geração, a cada nova turma, a esperança se renova. Então, nada de pessimismos. A verdade é que há muitas experiências que vêm sendo feitas, cujos resultados animadores indicam novos caminhos. Algumas dessas experiências estão às portas da escola (ainda do lado de fora), mas outras já estão confirmando suas promessas dentro da sala de aula. O que está dando certo pode ser disseminado, multiplicado e virar política pública, em resposta a demandas urgentes da sociedade. Aqui vão algumas amostras do que começa a acontecer.

Botando a mão na mídia

Tudo começou com a TV Maxambomba, um projeto do CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular, localizado na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro. Vídeos concebidos e realizados com a participação da população eram projetados em praças públicas, ao anoitecer, num telão instalado em cima de uma Kombi. Os moradores deixavam televisão e novela em casa e vinham assistir à programação variada da TV Maxambomba na praça, para ver a si próprios nos vídeos projetados, ver sua realidade, seus problemas e as soluções inventadas para superá-los. Viam seus artistas, compositores, empreendedores, toda a rica criatividade que não sai em jornal, nem se vê na televisão, onde periferia é só pobreza, crime e catástrofes.

Ao final da sessão, quem quisesse falar, criticar, dar sua opinião, tinha sua imagem projetada no telão, ao vivo, e tempo suficiente para desenvolver um raciocínio, defender uma posição, expor argumentos. Com isso, interagindo, modificando, completando, reeditando a informação recebida, numa experiência participativa, totalmente diferente do “assistir” passivamente televisão em casa.

A experiência seguinte foi entrar na escola, a convite da diretora, propondo aos alunos gravar a discussão depois da exibição de vídeos sobre assuntos de seu interesse, como sexualidade, cidadania, drogas, gravidez. Em vez da esperada inibição diante da câmera, as discussões rolaram tão intensamente que foi preciso pedir que parassem, para poder trocar a fita e continuar gravando as sessões de hora e meia.

Uma semana depois, voltamos com 20 minutos editados. Os alunos viram a si mesmos falando e perceberam carências, vícios de linguagem, dificuldade em expor o que pensavam. Além disso, a edição era arbitrária, faltavam falas. “Por que vocês usaram essa frase e não a que eu disse antes?” O editor tinha seus critérios sobre o que usar ou cortar: “Na televisão, também é assim”, explicou, “de uma fala de dez minutos, você usa uma frase que, dependendo da edição, pode dizer o contrário do que você queria”.

Os alunos, então, quiseram aprender a fazer, apoderar-se da tecnologia, botar a mão na mídia. Algumas semanas mais tarde, a experiência começou a chamar a atenção dos professores: os alunos estavam mais interessados, mais presentes, fazendo perguntas, passando a freqüentar a biblioteca. O que estava acontecendo?
É que para fazer um vídeo é preciso trabalhar em equipe. Escrever um roteiro exige linguagem correta, para que todo mundo entenda. Produzir é calcular custos, discutir, argumentar, ouvir outras opiniões. É uma obra coletiva, visando um objetivo comum, uma experiência que coloca em questão o antigo modo individual de aprender.

Organizamos oficinas para os professores, a seu pedido, abrindo espaço para suas reflexões e suas queixas sobre o desinteresse dos alunos. A certa altura, resolvemos mostrar-lhes o que os alunos pensavam deles. E, aos alunos, como os professores os viam.

Superando o choque recíproco inicial, e as discussões acaloradas em cada grupo, organizamos um encontro entre professores e alunos, em que puderam dialogar em igualdade de condições, experiência inédita para todos. O resultado foi uma série de mudanças na escola, onde um novo respeito mútuo entre professores e alunos criou um ambiente de co-responsabilidade pelo ensino e a aprendizagem.

Ao longo dos cinco, seis anos seguintes, muitas outras experiências foram sendo feitas, e o que começou espontaneamente teve de ser aprofundado, buscando embasamento teórico que nos ajudasse a aperfeiçoar a prática. A certa altura, decidimos sistematizar a experiência, elaborando o kit “Botando a Mão na Mídia”. Ali está, passo a passo, uma metodologia de teoria e prática, de ação e reflexão. Isto deu novo impulso a esse trabalho.

Além do que aconteceu no estado do Rio de Janeiro, onde todos os responsáveis por telepostos participaram de seminários de formação organizados pelo CECIP, a pedido da Secretaria, em 2006 este material foi distribuído nacionalmente a três mil escolas pela SECAD, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, do MEC. É um processo em marcha, o começo de uma mudança.

O Centro Cultural da Criança

Esta é uma experiência que se inicia como desenvolvimento de um processo em curso: os alunos de uma das mais violentas favelas do Rio de Janeiro, a do Morro dos Macacos, dispõem de um lugar, depois das aulas, onde podem decidir o que querem fazer, escolhendo livremente uma atividade. O espaço lhes proporciona acesso a bens culturais que, de outra forma, lhes seriam totalmente inalcançáveis: uma sala de informática, instalada pela Future Kids, que formou e acompanha os jovens monitores; uma biblioteca, com livros doados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e pela Fundação Lygia Bojunga; uma brinquedoteca, com uma profusão de jogos; uma videoteca, formada com doações escolhidas, particulares e da Fundação Roberto Marinho; uma sala de artes, uma de música e um espaço para atividades de expressão corporal, teatro e dança. Tudo isso criado com base em uma parceria entre o CECIP e a Associação Comunitária local e o apoio da Fundação van Leer. O que se espera dessa experiência? Que esses estudantes tenham outras opções de vida; que tenham outro aproveitamento escolar; que vivam uma experiência de cidadania responsável, que orientará todas as suas vidas.

Esperamos, sobretudo, que os resultados mostrem que essa experiência pode servir de modelo a uma política pública para crianças em outros lugares, com características semelhantes, nos grandes centros urbanos brasileiros. Cultura, comunicação e cidadania intimamente ligadas.

Revista Onda Jovem - Matéria publicada na Edição 8 - Julho de 2007 - Comunicação