Grafiteiro


Cassiano Elek Machado

1 2 3 4 5 6 Goiabas podres deslizam mais devagar que embalagens de salgadinho Fofura, sabor churrasco. Os invólucros de petiscos, assim como os do sabonete Lux Luxo, perdem fácil para as garrafonas de refrigerante, como aquela de guaraná Kuat que vem escorregando pelas águas marrom-cinza-esverdeadas, se esgueirando entre panos quase desfeitos, retalhos de papelão, pedaços de plástico e outros objetos pastosos não-identificáveis. Numa quinta-feira qualquer de março, o córrego fétido empurra seus detritos podres na regata habitual que conduz ao rio Tietê, a 20 metros dali.

Zezão não está interessado. Ele já viu a correnteza levar sofás, dezenas de cachorros mortos, um vibrador, orelhões e o cadáver de um cavalo. “Arrasta os pés”, grita ele, para suplantar o ronco dos caminhões que passam na marginal, lá em cima, com palavras como Minuano, Riopardense ou Lusitana escritas nas suas carrocerias metálicas. Ele aponta meu par de galochas pretas, já marinadas de esgoto, e grita mais alto, com a voz grave e sotaque paulistano: “Arrasta os pés”. Zezão aprendeu por conta própria. Numa das suas primeiras visitas às galerias do Tietê, ele não arrastou os pés. Caminhou normalmente e descobriu que pregos enferrujados pelas águas do esgoto são inimigos piores do que baratas, ratos ou o cheiro do ralo. Ele não tinha nem galochas. Amarrava sacos plásticos de supermercado, quantos conseguisse, sobre as botinas de motoboy. “Dropava” em bueiros, em estações de tratamentos de esgoto, descia pirambeiras abandonadas, enfiava o corpo, sem proteção, nos dejetos. Águas passadas.

Do capô dianteiro de seu Fusca creme, safra 1969, ele tira sua pièce de résistance, um traje de borracha verde-escuro. Com essa roupa de homem-rã da imundície, que começa sobre as galochas e vai até o umbigo, Zezão já chafurdou boa parte da rede de esgotos de São Paulo. Hoje é dia de córrego Carandiru.
A ponte Cruzeiro do Sul, sobre nossas cabeças, faz o corta-luz na manhã de sol ardido. Debaixo dela, dois cantores de ópera parecem assistir à cena. Observam, estáticos, Zezão descer a cachoeirinha de esgoto e enfiar as botas plásticas dentro da água lodosa, deixando pegadas enlameadas no limo marrom. O barítono Paulo Szot e a mezzo soprano Luciana Bueno nem se mexem, cristalizados que estão com seus sorrisos de “novos galãs da ópera” na capa do exemplar carcomido de uma Veja São Paulo de setembro de 2001.

Zezão tira o menor rolinho de espuma, o de 4 centímetros de largura, da sacola que leva atravessada no peito, e o mergulha na tinta azul- clarinha. Na parede interna da galeria de esgoto, pinta um pequeno círculo. Do meio dele faz sair um traço horizontal para a esquerda e, com agilidade, pinta ao redor uns arabescos. Uma das pernas encaracoladas do desenho, a mais magricela, segue como um pega-rapaz em direção às águas opacas e malcheirosas do córrego Carandiru. “Por esse esgoto correu o sangue dos detentos, por isso gosto de voltar aqui”, diz, em tom reflexivo, enquanto agita, como se fosse um chocalho, uma latinha de tinta. É sempre assim. Com o rolinho, ele faz desenhos sinuosos com o azul-claro. Com o spray azul-escuro, faz o contorno.

Dessa vez, ele parece insatisfeito. A Giverny de nosso Monet está como de costume – com seus fedores, suas não-cores, com a mesma água gosmenta arrastando pacotes de Fofura e outros dejetos por baixo da ponte. Mas a tinta não presta. “Está dando rejeição”, comenta, meneando a cabeça. Zezão aperta o botãozinho do tubo de Colorgin e o azul-escuro custa a aderir à parede de concreto armado. Por essas e outras ele prefere usar spray importado. Sua marca predileta é a Montana, fabricada na Espanha e na Alemanha.

Com o meio-dia por perto, o cheiro adstringente do spray e o aroma nauseante do córrego Carandiru ganham companhia. Encravado no estádio da Portuguesa de Desportos, do outro lado do Tietê, o restaurante Fogo dos Pampas começa a produzir brumas de maminha, picanha e alcatra. Sob os olhares curiosos de um mendigo, que toma banho nu em um fiapo d’água ao fundo do Carandiru, e de um travesti, que lava uma muda de panos vermelhos mais adiante, Zezão caminha, sempre arrastando os pés, para a parte mais escura, debaixo da ponte. Ele saca de novo o tubo de spray, e picha, em letras de quase 1 metro de altura, a palavra “VICIO”, em maiúsculas e sem acento. Ao lado, menorzinho, escreve: “Hoje e sempre”.

Charbelly Estrella é doutoranda em história da cultura na PUC do Rio. Ao microfone, ela desvendava os mistérios insondáveis da arte de rua: “O grafite inscreve um uso peculiar. Veja a publicidade. O outdoor te olha, te captura e aí você olha para aquilo, e ele te segue. O grafite é um curto-circuito sígnico. Há que chegar perto. O grafite não faz essa convocação. Ele pressupõe que há uma aproximação mesmo na distância.”

O auditório da Caixa Cultural, no centro do Rio, é tão limpo que o cheiro lembra um carro novo. As paredes têm forro de pano escuro, as poltronas são equipadas com mesinhas dobráveis para anotações, o ar-condicionado, bem afinado, não faz as sessenta pessoas na platéia sentirem falta de casacos. Charbelly dividia o palco com Sérgio Franco, mestrando na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, de Daniela Labra, que se define como “curadora independente e produtora cultural, interessada por arte interdisciplinar, não-objetual e ligada à pesquisa institucional”, e de Zezão. O debate se chamava “Grafite e a Cidade”.

Daniela Labra apresentou os componentes da mesa. “O Zezão tem um histórico superlegal, porque ele trabalha nos undergrounds da cidade de São Paulo, nos esgotos mesmo”, disse ela, enquanto o grafiteiro mexia num notebook Mac. “Só estudei até a 7a série, mas muito nego formado pela Faap não tem os bois que eu tenho”, ele disse. Zezão já teve um bocado de “bois”. Deu palestras em universidades como a USP e em museus como o MAM. Já escutou em várias ocasiões frases como “no século XIX.